O MODO DE VIDA FILOSÓFICO EM PIERRE HADOT - Parte 1

 

Este artigo é de origem da revista “INCONΦIDENTIA: Revista Eletrônica de Filosofia, Mariana-MG, Volume 3, Número 5, janeiro-junho de 2019.
Faculdade Dom Luciano Mendes - Curso de Filosofia”

 

Resumo: Este artigo apresenta as três partes constituintes do que conhecemos como modo de vida filosófico à luz do pensamento de Pierre Hadot (1922-2010). Essa proposta evidencia o compromisso hermenêutico de reconstruir o entendimento do pensamento inaugural da filosofia compreendido como exercícios espirituais (prática que visava o desenvolvimento de si através de exercícios de diversas formas de vida) e como conversão (reorientação política e filosófica calcada em aspectos internos e externos) e, finalmente, a constituição de uma nova forma de vida que propicia a transformação vida individual.

 

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1 - Exercícios Espirituais

Para Hadot, a mais importante característica da filosofia antiga é a busca incessante do filósofo em exercitar-se nas mais diversas formas de sua vida. A Antiguidade clássica é marcada, na hermenêutica hadotiana, por uma constante prática espiritual, voltada para o crescimento individual em seus mais diversos âmbitos: humano, intelectual, comunitário etc. Nisso consistem os exercícios espirituais, marca essencial da filosofia antiga que iremos estudar.

Diante da interpretação atual da palavra “espiritual”, Pierre Hadot inicia sua exposição explicando por que a preferência por utilizar esse termo em detrimento de outros. Outros termos – como psiquismo, ética, pensamento, intelectualidade, alma etc – não abarcariam tão profundamente a “inteireza” do ser humano quanto a palavra “espiritual”. Praticar exercícios espirituais (askesis) é, pois, exercitar-se em todas essas áreas juntas, uma vez que elas mesmas se comunicam a todo tempo no espírito humano.

 

A palavra “espiritual” permite entender bem que esses exercícios são obra não somente do pensamento, mas de todo o psiquismo do indivíduo e, sobretudo, ela revela as verdadeiras dimensões desses exercícios: graças a eles, o indivíduo se eleva à vida do Espírito objetivo, isto é, recoloca-se na perspectiva do Todo (“Eternizar-se ultrapassando-se”). (HADOT, 2014, p. 20)

 

O autor apresentará a sua interpretação com relação aos “exercícios espirituais”, destacando a abrangência desse aspecto hermenêutico e a influência que ele exerceu sobre as principais correntes filosóficas da Antiguidade, chegando até os dias atuais. Os principais exercícios espirituais que serão expostos são: aprender a viver, aprender a dialogar, aprender a morrer e aprender a ler. Essa análise será acrescentada, ainda, com a relação feita por Hadot entre os exercícios espirituais antigos e a filosofia cristã.

 

1.1 Aprender a viver

 

A primeira escola filosófica na qual se percebe com muita clareza o desenvolvimento de exercícios espirituais é o estoicismo. A filosofia, para o estoico, mais que uma possibilidade de acrescentar conhecimentos, é um modo de crescer humanamente, viver de modo reto, tornar-se melhor. E, para isso, é extremamente importante que a vida seja vivida de modo a não ser desperdiçada pelo uso desordenado das paixões: “A filosofia aparecerá então, em primeiro lugar, como uma terapêutica das paixões” (HADOT, 2014, p. 23).

Nesse sentido, se o homem se preocupa demasiadamente com aquilo que faz e com o seu futuro, a primeira grande tarefa da filosofia é torná-lo indiferente ao mal e ao bem que não dependem dele, contemplando e identificando-se a uma ordem universal que tudo abarca. É nesse momento que se inscrevem os exercícios espirituais, como técnica que possibilita ao homem deixar essas angustiantes preocupações, “a fim de operar pouco a pouco a transformação interior que é indispensável” (HADOT, 2014, p. 24). Os exercícios espirituais estoicos, como chave de interpretação para os de muitas escolas posteriores, seguem alguns passos bem definidos, dos quais o primeiro é a atenção (prosochè).
Ela consiste em uma constante concentração do indivíduo, que busca nunca ser pego despreparado, “de surpresa”, em uma determinada situação. Muitos autores, dentre os quais Marco Aurélio, em suas Meditações, fazem uso de sentenças curtas e pontuais (aforismos, ou apotegmas) para transmitir a seus discípulos (ou a si próprios) aquilo que eles precisam saber para não caírem nos mesmos erros de outrora. Por meio da meditação, do exame de consciência (feito várias vezes durante o dia) e do diálogo do filósofo consigo mesmo, ele passa a agir de modo sempre mais reto e até mesmo a aceitar os acontecimentos da Natureza.

 

A atenção (prosochè) é a atitude espiritual fundamental do estoico. É uma vigilância e uma presença de espírito contínuas, uma consciência de si sempre desperta, uma tensão constante do espírito. Graças a ela, o filósofo sabe e quer plenamente o que faz a cada instante. (HADOT, 2014, p. 25)

 

Assim, pois, a leitura de textos de caráter filosófico – na Antiguidade, de modo especial, dos mestres da escola à qual o filósofo pertence –, acompanhada de um profundo exame pessoal e memorização de técnicas são passos indispensáveis para aquele que deseja exercitar-se em seu viver (HADOT, 2014, p. 30).
A criação de hábitos – tanto no pensamento quanto no agir – que sejam retos e levem o filósofo a uma constante impassibilidade da alma é tema não apenas dos estoicos, mas também dos epicuristas. Nessa escola, que também fazia uso de meditações e uso de apotegmas, a alegria de existir, a partir da saciedade dos desejos naturais e necessários, é o principal objetivo. Mas no epicurismo, diferentemente da escola estoica, a alma deve ser exercitada pela descontração com relação às preocupações (desviando-se o olhar das coisas ruins e voltando-o para os prazeres), e não com a constante tensão para que não haja desvio (HADOT, 2014, p. 34). A amizade, expressa pela confissão pública dos erros e pela correção fraterna, é o exercício espiritual epicurista por excelência:

 

É o famoso verso de Horácio: carpe diem. “Enquanto falamos, o tempo cioso foge. Colha o hoje, sem te fiares no amanhã!.” Em última instância, para os epicuristas, o prazer é exercício espiritual: prazer intelectual da contemplação da natureza, pensamento do prazer passado e presente, prazer, enfim, da amizade. (HADOT, 2014,p. 35)

 

1.2 Aprender a dialogar


Se a figura de Sócrates foi a responsável por consolidar e influenciar toda a filosofia ocidental posterior e se os diálogos apresentados entre ele e seus interlocutores são os meios mais característicos de sua filosofia, não é difícil entender a importância dada por Hadot ao aprendizado do diálogo para a formação espiritual do filósofo na antiguidade. De fato, esse tema está estritamente ligado a um “inconsciente filosófico coletivo”, que perpassa gerações e chega até os dias atuais.

Em seus diálogos, Sócrates não tem o objetivo de informar seus interlocutores ou lhes ensinar muita coisa. Ao contrário, sendo ele aquele que “nada sabe”, a única coisa que ele pode oferecer a seus contemporâneos é a clareza de suas ignorâncias, a partir de um doloroso caminho de autoconhecimento e despojamento filosófico. A partir do exame de consciência (claramente percebido no andamento dos diálogos socráticos), o interlocutor é levado a alguma forma de
constrangimento para, assim, perceber a necessidade de cuidar de seu progresso interior. A filosofia mais do que nunca é amor à sabedoria e consciência de não tê-la ainda alcançado, resultando em um sentimento de privação e desejo (eros) de encontrá-la, como veremos posteriormente (item 2.1.2).

 

O diálogo socrático aparece assim, portanto, como um exercício espiritual praticado em comum que convida ao exercício espiritual interior, isto é, ao exame de consciência, à atenção a si, em síntese, ao famoso “conhece-te a ti mesmo”. Se o sentido original dessa fórmula é difícil de discernir, não é menos verdadeiro que ela convida a uma relação de si para consigo mesmo que constitui o fundamento de todo exercício espiritual. (HADOT, 2014, p. 38)

 

Sócrates, assim, é mestre não apenas no diálogo com o outro, mas também no diálogo consigo, a partir de uma extraordinária concentração sobre o mundo e sobre si mesmo. E uma coisa depende claramente da outra: não há como dialogar com o outro, sem ter um profundo diálogo consigo mesmo, e vice-versa. Eis, pois, um grande “mestre na prática dos exercícios espirituais” (HADOT, 2014, p. 38)!
Seguindo a mesma dinâmica – uma vez que são inspirados nos diálogos socráticos –, os diálogos platônicos são também manifestação clara de exercícios intelectual e, principalmente, espiritual. Com um discurso sempre ajustado à realidade do interlocutor no momento da conversa, o exercício realizado ali foge de qualquer dogmatismo possível, evitando-se expor uma doutrina, mas buscando-se sempre levar o interlocutor ao conhecimento de si por meio de um combate de argumentações que é, ao mesmo tempo, amistoso e real, doloroso (HADOT, 2014, p. 41).

 

Portanto, os exercícios são feitos pacientemente: “a medida de discussões como essas é a vida inteira, para pessoas sensatas”. O que conta não é a solução de um problema particular, mas o caminho percorrido para chegar a ela, caminho no qual o interlocutor, o discípulo, o leitor formam seu pensamento, tornam-no mais apto para descobrir por si mesmo a verdade (“o diálogo quer antes formar que informar”). (HADOT, 2014, p. 42)

 

O método dialético é, assim, muito mais importante que um possível resultado acadêmico alcançado, à medida em que consiste, por si só, num grande exercício espiritual. Ele procura, sim, a conversão do interlocutor à filosofia, passando a buscar de algum modo, por si mesmo, a verdade agora tão desejada. O que é realmente importante, aqui, é aquele que fala, o sujeito, e não aquilo do qual se fala. Para Lorrayne Colares (2016, p. 36).


Hadot quer chamar atenção ao fato que no diálogo socrático importa mais aquele que fala, do que aquilo que se fala. Ou seja, ao não pretender ensinar aquilo que não sabe, Sócrates conduz o interlocutor a examinar sua própria consciência e, assim, ter cuidado consigo mesmo e a conhecer a si mesmo. O diálogo como exercício espiritual deve ser então, ao mesmo tempo, diálogo com o outro e diálogo consigo mesmo (meditação).

 

1.3 Aprender a morrer


Hadot inicia a explanação sobre esse exercício espiritual traçando o paralelo entre a fidelidade ao Logos (isto é, ao uso da razão tão buscado pelos filósofos) e a morte. Para o autor, os dois estão intimamente ligados, o que é claramente percebido com o julgamento e a morte de Sócrates. Agindo em sua vida unicamente por acreditar e buscar um Bem que transcendia o próprio ser, Sócrates abraça a injusta morte e dá início, com ela, ao que se chamaria de platonismo.
Essa escolha é precisamente a escolha filosófica fundamental e pode-se então dizer que a filosofia é exercício e aprendizado para a morte, se é verdadeiro que ela submete o querer viver do corpo às exigências superiores do pensamento. (HADOT, 2014, p. 44-45)
E é por isso que o simples ato de filosofar, como a busca por abraçar “bens superiores”, já é, por si só, um exercício para a morte. Pela razão, o filósofo consegue fazer uma separação entre seu corpo e sua alma, despojando-se de suas paixões e buscando adquirir a independência do pensamento, “para se elevar ao ponto de vista universal e normativo do pensamento, para se submeter às exigências do Logos e à norma do Bem” (HADOT, 2014, p. 45). Assim, aquele que se exercita nesse aspecto, será, dentre todos os demais, o mais preparado para acolher a morte.
A vigilância constante e racional sobre suas atitudes é o caminho que possibilita ao filósofo se preparar para a morte. Nas mais diversas escolas do pensamento antigo considera-se a morte como um evento para o qual o homem pode – e deve – se preparar, sob prioridades relativamente semelhantes: 

 

Para Platão, o desenraizamento da vida sensível não pode assustar quem já provou da imortalidade do pensamento. Para o epicurista, o pensamento da morte é consciência da finitude da existência e ela dá um valor infinito para cada instante; cada momento da vida surge carregado de um valor incomensurável [...]. O estoicismo encontrará nesse aprendizado da morte o aprendizado da liberdade. Como diz Montaigne, plagiando Sêneca, num de seus mais célebres ensaios (“Que filosofar é aprender a morrer”): “Quem aprendeu a morrer desaprendeu a servir”. (HADOT, 2014, p. 46- 47)

 

Esse exercício espiritual, enquanto um processo de conversão – ao deixar de lado aquilo que não tem muita importância (as coisas “humanas”) e habituar a alma a libertar-se das paixões e elevar-se –, é claramente visto na filosofia estoica. Elevando seu pensamento até a perspectiva do Todo, o filósofo é libertado das ilusões da individualidade e alcança a grandeza de alma, “fruto da universalidade do pensamento” (HADOT, 2014, p. 49).
Nesse sentido, a física é também um exercício espiritual, à medida em que funciona tanto como preparação para a morte, impulso para se desprezar as coisas humanas e possibilidade real de elevação ao pensamento universal. O primeiro caso se dá porque o filósofo, ao contemplar a natureza, adquire alegria e serenidade necessárias para ser indiferente com relação à sua morte, que não haveria, assim, de ser um mal. O desprezo às coisas humanas (como a riqueza e a glória) é advindo da percepção de que elas têm muito pouca importância, diante da perfeição do universo. E a elevação ao pensamento universal é, pois, a possibilidade de “morrer para a nossa individualidade para alcançar, ao mesmo tempo, a interioridade da consciência e a universalidade do pensamento do Todo” (HADOT, 2014, p. 52).
Também em Platão percebe-se uma busca constante pela escolha da alma em detrimento do corpo, separando-os através de exercícios espirituais, especialmente através do abandono das paixões. A narração da morte de Sócrates, no Fédon, é um belo exemplo disso:

 

Sócrates escolhe a consciência ao corpo, e esta escolha se afirma como a escolha filosófica fundamental, na medida em que a filosofia é vista como aprendizado (e, por isso, exercício) para a morte. Essa morte, no entanto, deve ser compreendida como uma separação entre alma e corpo e os exercícios espirituais platônicos terão como objetivo, por isso, a característica de procurarem auxiliar o apartamento da alma em relação ao corpo visando o desapego pelas paixões e pela parcialidade o que evitaria o sofrimento. (COLARES, 2016, p. 37)

 

No neoplatonismo, com Plotino, o progresso espiritual continuou a ser muito buscado, até mais do que em Platão. Ele consistia nas seguintes etapas: “purificação da alma pelo desapego ao corpo, depois conhecimento e superação do mundo sensível e, enfim, conversão em direção ao Intelecto e ao Uno” (HADOT, 2014, p. 53). Afastar-se de tudo o que é dispensável (e muitas vezes até abominável, como os “pensamentos da carne”), voltar-se para a ação do Intelecto (através da busca pelo conhecimento, que é também um exercício espiritual) e contemplar o universo (como esforço para imprimir na própria alma os ensinamentos recebidos) passos do caminho para aquele que deseja voltar à sua essência, a seu estado puro, em união com o Todo.