O MODO DE VIDA FILOSÓFICO EM PIERRE HADOT - Parte 2

 

Este artigo é de origem da revista “INCONΦIDENTIA: Revista Eletrônica de Filosofia, Mariana-MG, Volume 3, Número 5, janeiro-junho de 2019.
Faculdade Dom Luciano Mendes - Curso de Filosofia”

 

 

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1.4 Aprender a Ler

A partir do que já foi exposto, fica bem claro que os exercícios espirituais foram praticados de maneiras distintas nas diversas escolas filosóficas da antiguidade. O que é de algum modo comum a essas práticas é o fato de que todas elas tinham uma mesma finalidade, o crescimento espiritual do filósofo, sua conversão, através de meios próprios que cada escola julgava adequados. Nas palavras de Hadot (2014, p. 55-56)

 

Os meios empregados são as técnicas retóricas e dialéticas de persuasão, as tentativas de domínio da linguagem interior, a concentração mental. A finalidade buscada nesses exercícios por todas as escolas é o aperfeiçoamento, a realização de si. [...] Os exercícios espirituais são precisamente destinados a essa formação de si, a essa paideia, que nos ensinará a viver [...] em conformidade com a natureza do homem que não é outra senão a razão.

 

Os exercícios espirituais, dessa maneira, são (a exemplo dos exercícios físicos11) um treinamento da liberdade da vontade do homem a fim de abdicar às paixões e, dessa forma, alcançar a realização que tanto busca. Isso acontece de modo muito presente no neoplatonismo, no estoicismo e no epicurismo.

 

Hadot utiliza uma interessante imagem plotiniana para exemplificar o que entende pela adesão aos exercícios espirituais. O filósofo é comparado a um escultor12 que, diferentemente do pintor, não acrescenta nada à sua obra para que ela fique pronta (à medida em que este, com suas pinceladas, sempre adiciona algo à sua tela). Ele, ao contrário, retira os excessos, busca o retorno para o essencial, para aquilo que ele é e para aquilo que realmente depende dele. A felicidade está aí, na indiferença com relação àquilo que não é – e, assim, não depende de mim –, para se voltar ao verdadeiro eu: a liberdade moral:

 

Todo exercício espiritual, portanto, é fundamentalmente um retorno a si mesmo, que liberta o eu da alienação na qual as preocupações, as paixões, os desejos o haviam enredado. O eu assim liberto não é mais nossa individualidade egoísta e passional, é nossa personalidade moral, aberta à universalidade e à objetividade, participando da natureza ou do pensamento universais. (HADOT, 2014, p. 57)

 

Nisto, pois, consiste o trabalho do filósofo: buscar alcançar a sabedoria, à medida em que a ama (por isso filo-sofia), ou ao menos progredir em direção a ela, uma vez que sabe que nunca a alcançará plenamente. O modo de vida filosófico que o filósofo abraça, dessa maneira, é um descolar-se da vida cotidiana, é assumir um “atestado de loucura” perante a sociedade habituada e firmemente instalada em suas estruturas. A atitude filosófica, contudo, deve ser sempre renovada por aqueles que a desejam praticar, a fim de evitar recair nos hábitos de outrora.

É a esse contexto – bastante complexo, diga-se de passagem – que Pierre Hadot se refere ao destacar que, antes de mais nada, a filosofia na Antiguidade é um exercício espiritual (HADOT, 2014, p. 59). Não se pode ler os textos antigos e tentar dar significados atuais a eles a partir de uma análise puramente sistemática, de maneira descolada desse ambiente em que foram escritos, a escola à qual o autor pertencia e a sua intenção (que sempre levava em conta o nível de aprendizado dos discípulos), dentre outros aspectos. Por isso é tão importante o exercício espiritual de saber ler!

 

Somos assim conduzidos a ler as obras dos filósofos da Antiguidade prestando uma atenção crescente na atitude existencial que funda o edifício dogmático. Quer sejam elas diálogos, como os de Platão, notas de curso, como as de Aristóteles, tratados, como os de Plotino, comentários, como os de Proclo, as obras dos filósofos não podem ser interpretadas sem levar em conta a situação concreta na qual nasceram: elas emanam de uma escola filosófica, no sentido mais concreto da palavra, na qual um mestre forma discípulos e se esforça para conduzi-los à transformação e à realização de si. (HADOT, 2014, p. 60)

 

É por isso que tantos “erros” e “contradições” podem ser encontrados nas obras de Aristóteles13, que inicialmente são simplesmente lições e notas de curso, e não manuais ou tratados sistemáticos. Da mesma forma acontece com Plotino, que, em seus textos, respondia a questões específicas relacionadas às necessidades de seus discípulos, buscando o progresso espiritual deles, uma vez que “não se leem os mesmos textos para os iniciantes, os que estão progredindo e os perfeitos” (HADOT, 2014, p. 63). Agostinho é também um exemplo, à medida em que, no De Trinitate, não expõe um sistema coerente para explicar a Trindade, mas uma série de imagens psicológicas da mesma, buscando que a alma do leitor faça essa experiência interior. Todos esses autores buscavam antes formar seus discípulos, modificando suas disposições de pensamento e de alma, do que informar ou transmitir puramente um sistema de pensamento em si (HOFFMANN, 2016, p. 302).

Uma análise que desconsidera isso, corre o risco de culpar os autores de erros que não procedem. Para Hadot (2014, p. 64), esse é o grande mal dos historiadores da filosofia contemporâneos: não sabem ler, ou interpretar a filosofia antiga, sob esses aspectos indispensáveis. Em seu pensamento, claramente não há possibilidade de haver uma boa hermenêutica da filosofia antiga sem um bom conhecimento dos textos, dos contextos e das intencionalidades por trás da produção filosófica. Para aprender a ler, filosofia e filologia devem estar intrinsecamente ligadas:

 

Ora, esse privilégio reconhecido à leitura nos remete novamente à conexão entre pensamento e história marcada ou regulada pela filologia. Se a história já deve ser entendida como exercício de leitura sem o qual não há filosofia, a filologia vem sobrecarregar esse exercício, vem torná-lo ainda mais exigente, ela demanda ainda maior esforço daquele que a pratica. (ALMEIDA, 2011, p. 103)

 

Isso acontece mais precisamente, como veremos adiante, desde o período da escolástica, na Idade Média, quando a teologia foi ganhando autonomia e a filosofia, pouco a pouco esvaziada de seus exercícios espirituais (que passaram todos para a mística e moral cristãs), foi ficando submissa à primeira, apenas servindo de contribuição a ela em termos teórico-conceituais. Somente a partir de Nietzsche a filosofia passa a ser novamente, de forma clara, uma maneira de viver. Mas ainda hoje esse aspecto é bastante posto de lado.

 

Nós passamos nossa vida a “ler”, mas não sabemos mais ler, isto é, parar, libertarmonos de nossas preocupações, voltar a nós mesmos, deixar de lado nossas buscas por sutilezas e originalidade, meditar calmamente, ruminar, deixar que os textos falem a nós. É um exercício espiritual, um dos mais difíceis: “As pessoas”, diz Goethe, “não sabem quanto custa em tempo e esforço aprender a ler. Precisei de oitenta anos para tanto e sequer sou capaz de dizer se tive sucesso”14. (HADOT, 2014, p. 66)

 

1.5 Exercícios espirituais e filosofia cristã

Lendo Paul Rabbow15, Hadot inicia esse tópico trazendo a grande semelhança entre os exercícios espirituais antigos (principalmente os presentes no estoicismo e no epicurismo) e os Exercitia Spiritualia de Santo Inácio de Loyola, grande referência da mística cristã ocidental. A própria filosofia, como um caminho para buscar a orientação para o interior do homem, é o exercício espiritual por excelência, que se perpetuaria de alguma forma no pensamento cristão e na sua espiritualidade.


Mais do que uma prática que visasse um resultado moralmente bom, os exercícios espirituais no cristianismo, contudo, buscavam um valor existencial, expresso por um modo de ser que demonstrasse todo o engajamento do seu espírito. A partir de uma ética pautada nos valores apresentados por Jesus nos Evangelhos e em outros textos das Sagradas Escrituras, os exercícios espirituais cristãos passariam a ser uma busca constante por agir como agiria o próprio Cristo, sempre para a maior glória de Deus e aumento da perfeição das almas dos fiéis (INÁCIO DE LOYOLA, Exercícios Espirituais, II, 185). 

 

O exercício espiritual, que parece como um gêmeo, em sua essência e em sua estrutura, ao exercício moral, esse exercício espiritual que foi levado à sua perfeição e rigor clássicos nos Exercitia Spiritualia de Inácio de Loyola, esse exercício espiritual, portanto, pertence propriamente à esfera religiosa, pois visa a fortificar, manter, renovar a vida ‘no Espírito’, a vita spiritualis. (RABBOW16, 1954 apud HADOT, 2014, p. 68)

 

O ponto de partida para compreender os exercícios espirituais no cristianismo é exatamente o momento em que estes passam a ser considerados como filosofia. Não uma outra e qualquer filosofia, mas a verdadeira filosofia. Trazendo para si o Logos dos gregos (que é Deus e agora se fez carne, em Jesus Cristo), a filosofia cristã busca basicamente viver em união integral a esse Logos, a partir de exercícios espirituais específicos – também a tradição judaica muito influenciou nesse processo filosófico do cristianismo, especialmente a partir de Filo de Alexandria17 (HADOT, 2014, p. 71).

Hadot considera que a filosofia e a filologia ensinadas de Homero a Platão constituem uma unidade lógica que ganha densidade transcendental à medida que a paideia constitui no indivíduo uma nova forma de vida. Os Padres, porém, ressignificaram o percurso da paideia grega, à medida que empregaram o logos para definir o novo estatuto da filosofia. Segundo eles, mediante a encarnação do logos, pode-se afirmar que os filósofos gregos apenas compreenderam frações do logos, ao passo que o cristianismo, em torno do logos encarnado, é a única verdadeira filosofia que vive conforme e na posse do logos. A vida conforme o logos realiza-se mediante o assemelhamento a Deus e a aceitação do plano divino como a nova paideia. O cristianismo constitui-se, doravante, “como a filosofia”: discurso e modo de vida. (MARQUES, 2015, p. 35)

Segundo Hadot, portanto, é a partir dos padres apologistas que o cristianismo entra na dinâmica dos exercícios espirituais já presentes na filosofia. Isso é muito significativo, por comprovar a ideia do autor da presença dos exercícios espirituais na filosofia antiga, uma vez que, “se o cristianismo podia ser assimilado a uma filosofia, é precisamente porque a filosofia já era ela mesma, antes de tudo, um modo de ser, um estilo de vida” (HADOT, 2014, p. 72). Os dois grandes expoentes desses exercícios espirituais, no cristianismo, são a prosochè e a apatheia.

 

O primeiro termo se refere à atenção que o filósofo dedica a si mesmo, a vigilância constante de suas ações (extremamente parecido com o que se vê nos apotegmas de Marco Aurélio), a atenção contínua ao tempo presente. Tudo em prol de uma purificação da intenção, a fim de agir sempre segundo a Razão universal (a partir do próprio “olhar” de Deus, buscando identificar a vontade do homem com a d’Ele). A lembrança constante de Deus, a partir da meditação e do estabelecimento de regras (dogmas) é também um caráter essencial aqui, bem como o exame de consciência (como na Antiguidade) e a confissão pública dos pecados. Decorrem dessa constante atenção, o domínio de si e a tranquilidade da alma, muito buscados na vida monástica, “modelo” da vida cristã por muito tempo.

Assim nós retificamos os juízos que fazemos de nós mesmos: se nos acreditamos ricos e nobres, nós nos relembraremos de que somos feitos de terra e nos perguntaremos onde estão agora os homens célebres que nos precederam. Ao contrário, se somos pobres e desprezados, tomaremos consciência das riquezas e esplendores que o cosmos nos oferece: nosso corpo, a terra, o céu, os astros e pensaremos em nossa vocação divina. Há de se reconhecer facilmente o caráter filosófico desses temas. (HADOT, 2014, p. 74)

O outro conceito apresentado pelo autor como importante aspecto hermenêutico para entender a filosofia cristã é a apatheia, isto é, a busca pela ausência de paixões, manifesta pelo desapego das coisas “dispensáveis”18. Ela se alcança a partir do domínio de si, com consequente imperturbabilidade da alma, e da busca pelo verdadeiro conhecimento do universo. Para se chegar à apatheia, segundo o cristão Evágrio, é necessário o progresso espiritual suceder-se pelo caminho da ética (como purificação), da física (como desapego do sensível) e da teologia (como contemplação dos princípios das coisas) (HADOT, 2014, p. 83). Por fim, a apatheia é também considerada um bom caminho para o filósofo exercitar-se para a morte, uma vez que, como em Sócrates, a alma desapega-se do corpo pelo conhecimento (gnose) e pode, assim, contemplar as coisas tais quais elas são.


Dessa maneira, não é difícil comprovar, junto com Hadot, a existência dos exercícios espirituais na filosofia cristã. Sempre ligados a uma cultura filosófica bastante determinada e com características próprias, eles estão presentes tanto nas Sagradas Escrituras, quanto nas regras da vida monástica e nas atitudes filosóficas propostas pelos diversos autores. Na filosofia cristã, herdeira das diversas escolas filosóficas da Antiguidade, as virtudes são buscadas a todo custo, em uma busca interminável do pensamento para encontrar Deus.

Todo esse aprendizado, essa exigente terapêutica em relação ao corpo e à alma, coloca o homem, em primeiro lugar, em relação consigo mesmo e, necessariamente, em relação com o outro. Daí a conexão entre as quatro seções que compõem o artigo Exercices spirituels: “aprender a viver”, “aprender a dialogar”, “aprender a morrer”, “aprender a ler”. É preciso enxergar que não há nisso nenhuma ordem, nenhuma progressão. Não há primeiro nem último, pois não são estágios, mas elementos que, naquele espaço que o contato do homem com a natureza abre – a filosofia – se integram, se interpenetram e se complementam. (ALMEIDA, 2011, p. 108)

 

Continua