A transmissão da herança espiritual do Egito para a Itália

 

BORIS DE RACHEWILTZ

 

Política Romana 2/1995

 

O Nilo e o Tibre, os dois rios que desaguam num só mar, o Mediterrâneo - cadinho e forja de algumas das mais importantes civilizações do passado - podem tornar-se símbolos das suas respectivas culturas: a do Egito e a de Roma. Uma moeda da época de Domiciano mostra duas mãos que se apertam[1] e a inscrição nos informa que uma é a do Nilo, a outra do Tibre.

 

Transmissao


Que pacto misterioso foi selado por esse aperto? Vale a pena tentar descobrir.

As antigas divindades egípcias sobreviveram à "grande tempestade" representada pela primeira invasão persa e depois por aquela da macedônia. O próprio Cambises, que reinou de 529 a 521 a.C., prestou homenagem pública à deusa Neith em seu santuário em Sais[2], que ele havia restaurado. Por sua vez, Alexandre o Grande, para legitimar sua soberania sobre o Egito, teve que ir ao templo de Amon no Oásis de Siuá onde o deus o reconheceu como seu filho. Alexandre deu origem à dinastia Lágida que se perpetuou através dos vários Ptolomeus. O primeiro da série, Ptolomeu I Soter (304 a.C.), introduziu o culto a Serápis, divindade sincrética composta por Osíris, que reúne todas as características das divindades masculinas do panteão egípcio, e Apis, o touro sagrado símbolo da fertilidade (Osiris + Apis = Serápis). Divindade antropomórfica, Serápis carrega na cabeça o símbolo do alqueire da fertilidade agrícola e possui as qualidades de Esculápio, deus da medicina. É encontrado associado à deusa Ísis, que por sua vez herda todas as outras divindades egípcias femininas. Assim surgem os Iseu e os Serapeu[3], locais de culto dessas duas divindades.

Aqui poderíamos indagar, retomando à simbologia das duas mãos que se apertam na moeda de Domiciano, por que motivo a religião egípcia entendeu ser mais apropriado estabelecer sua base mais proeminente em solo itálico, ao invés daquelas pré-existentes na Grécia – particularmente na ilha de Delos – na Macedônia e na Ásia Menor. Evidentemente, a Itália e mais particularmente Roma, onde os próprios cultos foram oficializados e levados ao seu máximo esplendor, constituíram a área "meta-histórica" ​​mais adequada à aceitação da mensagem que vinha das margens do Nilo relativa à “Transmissão da herança espiritual do Egito para a Itália”.

Seguindo as etapas da difusão progressiva dos cultos egípcios, deve-se lembrar que na ilha de Delos havia muitas famílias de origem itálica devotadas a Ísis: os Aemili, os Caecili, os Alicei, os Cornelii, os Lolli etc. Foi também graças a eles que as divindades egípcias se espalharam pela Campânia, a partir do porto de Putei (Pozzuoli)[4], o segundo mais importante de todo o Mediterrâneo, que mantinha estreitos contatos comerciais com Delos. O Serapeum de Pozzuoli remonta ao século II a.C. Em Pompéia, a classe dos Isíacos[5] que aparecem nos programas para as eleições municipais (isiaci universi rogant) era numerosa e influente.

Os cultos se espalharam por toda a Campânia, particularmente em Pompéia, Herculano, Estábia, Nápoles. O primeiro testemunho escrito dos cultos egípcios em Roma é encontrado em Apuleio (século II d.C.) que em suas Metamorfoses fala dos Pastóforos, sacerdotes isíacos, já presentes em Roma na época de Silla (85 aC).

Se o Egito, na visão iluminada do sacerdócio iniciático, deveria sobreviver em sua essência espiritual além das barreiras representadas por invasões, convulsões políticas, novos cultos – tendo o Mediterrâneo como mediador - é óbvio que Roma se torna o ponto focal e de destino ao mesmo tempo.

Para entrar na dimensão da eternidade era preciso beber do Tibre. Para se estabelecerem, porém, os cultos egípcios tiveram que lutar contra as camadas mais conservadoras, opostas a qualquer possível contaminação com cultos orientais. Assim, os cultos egípcios foram considerados uma turpis superstitio[6] e em 65 a.C. um altar dedicado a Ísis no Capitólio foi destruído por ordem do Senado. Em dezessete anos, o Senado destruiu cinco santuários, mas todos eles vieram a ser reconstruídos. No entanto, apesar dessas oposições iniciais, os cultos alexandrinos assumiram um vigor cada vez maior, tanto que em 43 a.C. foram os próprios triúnviros[7] que mandaram erguer um Iseu, pouco antes da chegada da Roma de Cleópatra, recebido como uma “nova Ísis”. Tibullo e Ovidio recorreram ao Iseu para implorar proteção à suas amantes, e Dião Cássio relata que Antonio e Cleópatra se fizeram retratar em afrescos e estátuas, ele como Osíris-Dionísio, ela como Ísis-Selene.

Tornado o Egito uma província romana, as relações com a Itália se intensificaram e os vestígios deixados pelos egípcios em solo italiano se multiplicaram. Segundo Estrabão (Str. XIV, VI, 5, 15), escritores de Alexandria se estabeleceram em Roma e entre eles vários filósofos espalharam a Gnose Alexandrina, o Neoplatonismo e o Maniqueísmo. Antônio, após sua reconciliação com César, era sempre acompanhado por um astrólogo egípcio do Vale do Nilo. Após a morte de César e o retorno de Cleópatra ao Egito, o novo triunvirato formado por Antônio, Otaviano e Lépido decidiu construir um templo dedicado a Ísis e Serápis em Roma.

Augusto permitia o culto egípcio fora do pomério e Dião Cássio chega a afirmar que o imperador pessoalmente mandou erigir santuários aos deuses egípcios. Em 10 a.C. ele ergueu os dois obeliscos de Heliópolis, colocando um no Circo Máximo e outro no Campo de Marte.

Tibério, por outro lado, era um adversário desses cultos e mandou queimar o Iseu Campense, mas os descendentes de Antônio favoreceram o culto isíaco em todos os sentidos. Calígula (37-41 d.C.) reconheceu oficialmente os cultos egípcios e reconstruiu o templo de Ísis no Campo de Marte destruído por Tibério. Ele foi iniciado nos mistérios de Ísis e instituiu peças interpretadas por atores egípcios que imitavam a viagem ao submundo. Ele se casou com sua irmã Drusilla e se fez deificar junto a ela. Ele ficou arrasado por sua morte e ergueu um templo onde se celebrava a Drusilla Panthea[8]. Sob Calígula, o culto alexandrino começou a ser professado publicamente e muito impulso foi dado ao bairro egípcio que se ergueu em torno do Iseu-Serapeu Campense. Cláudio (54-58 d.C.) é lembrado com seu nome gravado em vários templos do Egito, como os de File, Kom Ombos, Dendera etc. Sob Nero, Ísis e Serápis foram definitivamente recebidos no culto público. Sua esposa, Popeia Sabina, vinha de uma família isíaca e era devota da deusa. As festas egípcias com os dias solenes sagrados observandique dies desse período tomaram seu lugar no calendário romano e eram celebradas sem nenhum obstáculo. Os flavianos também protegiam os deuses egípcios: Vespasiano (65-79 d.C.) ergueu um templo para o deus Serápis. Voltando de sua vitória sobre os judeus, ele passou a noite anterior ao dia solene do triunfo em Iseo Campense com seu filho Tito, em agradecimento à deusa. Domiciano reconstruiu o Iseo de Campo Marzio, que pegou fogo em 80 d.C. Ele escapou das tropas de Vitélio ainda jovem, vestindo-se como sacerdote isíaco. Ele apoiou os cultos egípcios e ergueu um Arcus Isidis em homenagem à deusa. Adriano (117-138 d.C.) foi atraído pelos cultos orientais, particularmente pelos alexandrinos. Em 127 d.C. ele dedicou um templo a Serápis em Óstia e um Iseo onde a deusa foi identificada com Deméter. Entre 117 e 130 d.C. fez inúmeras viagens ao Egito, onde fundou a cidade de Antinoópolis em homenagem a Antínoo, seu companheiro favorito que se afogou no Nilo. O culto de Antínoo se espalhou por todo o império. Em Roma, o imperador mandou erguer em sua memória um obelisco com uma dedicatória hieroglífica na qual aparece o nome de Roma. No Egito, ele consagrou um templo para Ísis em Luxor e em 135 d.C. um santuário helenístico dedicado ao Nilo. Mas sobretudo perpetuou a memória de Serápis na sua vila de Tibur (Tivoli), inspirando-se na cidade de Canopus (Egito), concluída entre 134 e 138 d.C. A simpatia do imperador pelos cultos egípcios também é demonstrada por uma medalha cunhada em 132 d.C. em Alexandria: no verso está o deus Serápis que, de pé, estende a mão direita para Adriano. Parece que Adriano e Marco Aurélio, os dois imperadores filósofos, foram seduzidos pelo elevado misticismo dos mistérios egípcios. Especialmente Adriano tentou recriar o saeculum aureum, a mítica Idade de Ouro, recorrendo a elementos egípcios. O romance iniciático "Asno de Ouro" de Apuleio, contido em suas Metamorfoses, com a preciosa descrição das cerimônias isíacas, remonta à época de Antonino Pio (138 161 d.C.).

Marco Aurélio, por sua vez, demonstrou uma propensão para os cultos egípcios. Ele tinha em seu séquito um mago do Vale do Nilo ao qual Dion Cássio atribuiu uma chuva milagrosa que levou as tropas romanas à vitória na Bósnia. Cômodo (182-192 d.C.), filho de Marco Aurélio, por sua vez promoveu o culto isíaco participando de procissões e carregando uma estatueta do deus Anúbis. Sob seu reinado aparecem as primeiras moedas marcadas com Serápis e Ísis. O deus[9] aparece em pé com um cetro na mão e com os raios do Sol em volta da cabeça. Já no passado Serápis e Ísis eram considerados protetores da casa imperial. O baixo-relevo do Arco de Galero em Tessalônica também traz, além das imagens dos imperadores, as duas divindades egípcias. Mas é sobretudo a partir de Diocleciano que se cunha a série ininterrupta de moedas com as divindades alexandrinas. Dado que Cómodo foi o primeiro a associar os deuses de Alexandria às antigas felicitas romanas[10], não é impossível que esta tenha sido influenciada por Alexandria, pois está ligada ao tema mítico da Idade de Ouro, que sob Adriano foi enriquecida por elementos egípcios. Sétimo Severo (193-211 d.C.) converteu-se aos cultos egípcios e, a partir do seu reinado, estes tornaram-se quase propriedade privada dos Severos. Caracalla (211-217 d.C.) parou para rezar no Serapeu de Alexandria antes da guerra contra os Parta[11] e introduziu o culto de Ísis e Serápis nas muralhas romana. A Regio III foi dedicada precisamente a Isis e Serápis, fato único não encontrado em nenhum outro culto, incluindo o muito difundido de Mitra.

Com a afirmação progressiva do cristianismo, os templos pagãos, como os Iseos e os Serapeus, rapidamente caíram em ruínas, tornando-se muitas vezes pedreiras de material de construção para novas igrejas. As divindades pagãs, inclusive as egípcias, que desembarcaram em solo italiano, "adormeceram" e o Jordão parecia substituir o Nilo em relação ao Tibre.

Recentemente, alguns escritores católicos fundamentalistas, como Blondet, questionaram as declarações dos Padres da Igreja segundo as quais com a morte do "deus Pã", as divindades e oráculos pagãos morreram (ver Eusébio, Praep. ev. V, 17). Mas "com o passar do tempo, os oráculos recuperam a sua voz, como instrumentos quando músicos experientes estão lá para tocá-los" (Plut., De defec, orac., 15). Lembrando o que Plutarco (Ibid.) tinha a dizer sobre as divindades pagãs (desinunt isti non pereunt[12]), será que Blondet levantaria a hipótese da intervenção de algum “músico experiente” capaz de fazê-las “recuperar a voz” também?

Traduzido por 268.

 

[1] Dexiosis, nas artes, é a representação de duas pessoas oferecendo a mão direita uma à outra. Relevos de dexiosis encontrados em moedas antigas tinham como intenção mostrar os laços entre duas cidades por meio de apertos de mão.

[2] Egito (N.d.T.)

[3] Templo de Ísis e Serápis (N.d.T.)

[4] As áreas dos Campos Phlegraean eram conhecidas desde a antiguidade pelas propriedades curativas de suas águas termais de origem vulcânica (o mesmo nome antigo para Pozzuoli, Puteoli, vem da palavra putei, ou “poços”, aqueles de onde as águas corria), e o poema de Pietro da Eboli enumera todos os banhos antigos descrevendo os benefícios que as suas águas podiam trazer ao corpo de quem se banhava, mas também simplesmente evocando os momentos agradáveis que se podiam passar nos banhos. (N.d.T.)

[5] Os Isíacos eram uma parcela muito pequena da população do Império Romano, mas vinham de todas as classes sociais, de escravos, libertos a oficiais de alto escalão e membros da família imperial. (N.d.T.)

[6] “Superstição feia”. (N.d.T.)

[7] Alta triarquia política. (N.d.T.)

[8] “Deusa de tudo”. (N.d.T.)

[9] Serápis desenhado na moeda. (N.d.T)

[10] Felicitas era uma divindade da abundância, riqueza e sucesso e presidia a boa fortuna; sua festa foi celebrada em 9 de outubro. Às vezes, o termo felicitas era um epíteto que se referia à personificação da felicidade de Juno Felicita. Em Roma ela tinha muitos templos, incluindo um no Monte Capitolino, e era retratada com o caduceu e a cornucópia. (N.d.T.)

[11] Império Parta. (N.d.T.)

[12]estes deixam de não perecer”. (N.d.T.)