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Páginas emblemáticas de Platão

Platão escreveu noVIII° livro da República algumas páginas que nos últimos anos se tornaram famosas, pois descrevem uma forma de patologia da psique que se reflete de uma maneira surpreendente em muitos dos males dos homens, especialmente dos jovens, hoje.

Lemos uma passagem-chave, verdadeiramente magistral, contendo conceitos expressos com grande perspicácia psicológica, que também apresenta, em contraponto, provocantes chicotadas irônicas (tenha em mente que a "democracia" da qual Platão fala aqui coincide, na realidade, com a "demagogia").

Giovanni Reale, Corpo Anima Salute, Milano


A tirania e o tirano

Vejamos então, meu querido amigo, como surge a tirania; porque sua origem democrática é evidente.

Sim, evidente.

E não nascerá a tirania da democracia do mesmo modo que esta nasceu da oligarquia?

Como?

O bem a que se propunha a oligarquia e o meio pelo qual se estabeleceu era a riqueza. Não é assim?

Com efeito.

Ora, foi a ânsia imoderada dessa riqueza e o abandono de tudo mais em favor dela que perdeu a oligarquia.

É verdade.

E não é igualmente o apetite insaciável daquilo que a democracia considera como bem próprio que acarreta a sua dissolução?

Quem bem?

A liberdade – respondi. – Nas cidades democráticas se costuma dizer que ela é a mais bela coisa que existe e, portanto, só ali vale a pena viver para um homem livre por natureza,

Sim, é o que se ouve com frequência.

Mas aqui tens o que eu ia dizer agora: não será essa ânsia de liberdade e o descaso por tudo mais que acaba por alterar o regime político que estamos examinando e faz surgira necessidade da tirania?

Como? – perguntou ele.

Quando o festim da cidade democrática e sedenta de liberdade é presidido por maus escanções e ela se embriaga mais do que convém com esse vinho forte, passa a castigar os seus governantes se não são totalmente frouxos e não lhe proporcionam em abundância, chamando-os de malvados e oligárquicos.

Com efeito, isso é muito comum.

E aos que se submetem aos governantes, injuria como a escravos que oferecem o pescoço à canga e homens sem nenhum valor; o que lhe

Convém são governantes que se assemelham aos governados e governados que pareçam governantes; esses são as meninas de seus olhos, a quem honra e elogia tanto em privado como em público. Ora, é possível que numa cidade assim a liberdade tenha quaisquer limites?

Impossível.

Pouco a pouco, meu amigo, a anarquia se infiltra nos domicílios privados e termina contagiando os próprios animais.

Que queres dizer com isso?

Que o pai se acostuma a igualar-se com os filhos e a temê-los, e os filhos a igualar-se com os pais e não lhes ter respeito nem temor algum, pois essa é a sua ideia de liberdade; e o meteco se iguala com o cidadão, e o cidadão com o meteco, e o forasteiro da mesmíssima forma.

Sim, isso acontece – disse ele.

E não são esses os únicos males – prossegui. – Há outros menores: o mestre teme e adula os seus discípulos, e os discípulos desprezam mestres e preceptores. Jovens e velhos, todos se equiparam; os rapazes rivalizam com seus maiores em palavras e ações; e estes condescendem com eles, mostrando-se cheios de bom humor e jocosidade, para imitá-los, e não parecem casmurros e autoritários.

Assim é, efetivamente.

E tal excesso de liberdade chega ao cúmulo, meu amigo, quando os que foram comprados com dinheiro não são menos livres que seus compradores; não devemos esquecer tampouco a liberdade e igualdade dos dois sexos em relação um com o outro.

Por que não dizer, segundo a expressão de Ésquilo, “o que nos vem agora a boca”? – Perguntou.

É o que estou fazendo, e devo acrescentar ainda: ninguém que não o tenha visto poderá acreditar quão mais livres são na cidade democrática os animais que se acham a serviço do homem, pois, como diz o refrão, as cadelas valem tanto quanto as suas donas e os cavalos e asnos andam às soltas, como importantes personagens, empurrando pelos caminhos a quem não lhes cede o passo; e por toda parte se vê a mesma pletora de liberdade.

A quem o dizes! Mais de uma vez me ocorreu isso quando passeava pelo campo.

E, em resultado de tudo que expusemos, vê como se tornam suscetíveis os cidadãos: irritam-se à menor imposição da autoridade e não a toleram. E terminam, como sabes, votando ao mais completo desprezo as leis, escritas ou não, para não terem nada nem ninguém acima de si.

Muito bem o sei.

Tal é, meu amigo – disse eu –, o belo e glorioso princípio de onde nasce a tirania.

Glorioso, não há dúvida – respondeu ele. – Mas que é que vem depois?

Que a mesma doença que se manifestou na oligarquia e acabou com ela torna-se aqui mais grave e poderosa, devido a licença reinante, e escraviza a democracia; pois a verdade é que todo excesso num sentido costuma produzir uma reação no sentido contrário, tanto nas estações como nas plantas e nos animais, porém acima de tudo nos regimes políticos.

É natural.

Parece, pois, que o excesso de liberdade só pode terminar num excesso de escravidão, tanto para o indivíduo como para a cidade.

Assim parece, realmente.

E assim, é natural que a tirania não possa surgir de outra forma de governo senão da democracia, isto é: da extrema liberdade nasce, segundo penso, a maior e mais rude servidão.


A República, Platão – Editora Nova Fronteira (páginas 329 -332)


É facilmente perceptível e simples de diagnosticar que o estado atual do homem é fruto da separação deste com o mundo natural, tanto material quando mental, que dirá do espiritual que na maior parte dos casos é apenas uma ilusão distante quando não, indesejada.

E este é o resultado de um mundo parcialmente guiado por ideologias e demagogias diversas que vem se sobrepondo à razão humana ao longo de sua história; algumas sutilmente, outras como um trator levaram o “ser civilizado” a crer que um mundo disruptivo de fáceis ilusões e prazeres imediatos é direito natural garantido por sua simples existência.

Uma leitura atenta do tema indicado por Giovanni Reale nos mostra que as raízes desta dissonância, explicita no mundo moderno, já podiam ser entendidas pelos antigos, o que chama a atenção ao quão importante é a educação clássica para compreendermos a história humana, para que o homem não seja escravo das ditas demagogias libertadoras e sim um homem integral capaz de guiar o seu destino com base na razão e no amor à vida qualquer que seja a forma que se manifeste.

Nantar