Apresentação e seleção: Ros Igneus Astri.

 

Prefácio:

Lezama Lima: escritor nascido na Habana (Cuba) em 1910, e falecido na mesma cidade em 1976.
Maria Zambrano: filósofa nascida em Málaga (Espanha) em 1904, e falecida em Madri em 1991.

D2 ZAMBRANO LIMA

Dentro da literatura e da filosofia atuais em língua castelhana, é pouco frequente o tratamento do fenómeno órfico e pitagórico, ao menos de uma maneira tão focalizada como é o caso deste ensaio de Maria Zambrano que apresentaremos a seguir, assim como é ainda menos frequente, entre os escritores e poetas contemporâneos, uma relação de simpatia adivinatoria, com relação ao orfismo e ao pitagorismo, como é o caso de Lezama Lima. Por outro lado, dentro da âmbitos do que se convencionou denominar “ocultismo”, o orfismo e o pitagorismo permanecem velados ante as cosmovisões preponderantes vindas da Kabbalah e do Hermetismo. No entanto, dificilmente terá havido um paradigma teúrgico tão influenciado pelo pitagorismo e neopitagorismo como o da Kabbalah (a qual, no período alexandrino no qual recebe seu influxo (neo)pitagórico, nem sequer portava esse nome), tanto na sua aritmosofía como em sua doutrina das almas, assim como nos vínculos de ambas com as esferas planetárias a partir de uma efetiva fonurgia universal traduzida em ritos e liturgias.
O orfismo, entretanto, aporta suas dramaturgias de êxtases de caráter “psicopompo”, caberia dizer – em palavras de Mircea Eliade – trazendo consigo certo “conhecimento de salvação” prévio à sua tradução cristã. Este conhecimento é de ordem operativo, não especulativo e tampouco teológico: implica na descida e ascensão efetivas da alma a traves das esferas, cuja figura central nem sequer é Orfeu, senão um deus primordial e mesocósmico do mythos órfico: Fanes, filho de Éter, nascido do ovo primordial. A iconografia alada deFanes, ademais rodeado pela serpente terapeuta (por vezes caduceu), o assemelha às similares funções mesocósmicas em Mercúrio e Hermes.
Porém tudo isto é dizer muito para o âmbito da filosofia e da literatura contemporâneas (sendo, além do mais, que esta apresentação não compete à mitologia comparada). Neste sentido, a aparição das figuras excepcionais de María Zambrano e Lezama Lima, permite ver melhor até que ponto a filosofia e a literatura deram por “superadas” as suas vinculações pré-filosóficas, quer dizer, suas investigações e adivinhações pré-humanistas [= pré-aristotélicas], que (contudo) subsistem e permanecem ao longo dos séculos até hoje. Sua história é uma parahistoria que melhor se canta antes do que se conta, e que portanto ressoa mais do que se argumenta.
A obra de Lezama Lima e a de Maria Zambrano são de uma enorme relevância dentro da literatura do século XX, seja no campo da poesia como no da filosofia. Porém, ademais no que se refere ás suas biografias, ambos tiveram a mesma fortuna de se conhecerem em Habana, em 1936, durante o longo exilio itinerante de Maria Zambrano. Desde aquele momento mantiveram íntima amizade, compartindo leituras, conferências e projetos editoriais, como a incontornável revista Orígenes dirigida por Lezama Lima. Em seu último livro de poesia, Fragmentos a su imán, de 1975, Lezama dedicou a sua amiga o poema “María Zambrano”.
O que nesta ocasião resulta relevante é que compartilharam uma fascinação pelo orfismo e o pitagorismo desde o ponto de vista do conhecimento poético, sobretudo em Lezama, e em Zambrano desde a sua visão filosófica, que nela sempre implicará, ao mesmo tempo, uma expansão sensorial e experimental. Em ambos os casos, especialmente em Lezama, se toca sem o menor escrúpulo intelectual, o vínculo operativo com o mystes órfico-pitagórico na poesia [se a poesia é encantação da quantidade] especialmente através do que se denominará “conhecimento de salvação” [título de um ensaio seu incluído no livro “Confluencias”].
No caso de Zambrano, como veremos a seguir, se trata de entender “a condenação aristotélica dos pitagóricos”, não para continuar em uma velha polêmica erudita, senão para captar como é que ontem e hoje o pitagorismo pode seguir interpelando-nos e chamando-nos através de seu dia pas ón [Zambrano sugere que diapasão, em chave pitagórica, se traduz por “tem de se passar por tudo”], experiência, então, antes que termo técnico, através da qual se atravessam todas as escalas do universo, uma obra de êxtase ou “iter extaticum” (nas palavras do hermetista jesuíta Athanasius Kircher).
Devido ao meio de leitura rápida no qual este artigo está sendo inserido para leitura, deixo a biografia e bibliografia de ambos os autores para quem deseje pesquisá-las. A Wikipedia oferece, ao menos em castelhano, uma referência completa de ambos, embora suas duas obras principais, a novela “Paradiso”, no caso de Lezama (à qual deveriam ser agregados vários dos seus ensaios) e “El hombre y lo divino“, no caso de Zambrano, são as fontes que oferecem referência mais direta.
Por fim, uma última breve advertência, consiste em esclarecer que, por ser de uma riqueza tão condensada a prosa de Lezama e Zambrano, escolhi a tarefa do copista, que admira e passa a lâmpada diretamente, antes que a do divulgador que se interpõe. O que segue, então, é a transcrição direta de fragmentos do ensaio “La condenación aristotélica de los pitagóricos”, de Zambrano, incluído o livro “El hombre y lo divino”, editado em 1955 no México pelo Fondo de Cultura Económica.
Em um segundo artigo será o momento dos fragmentos da obra novelística e ensaística de Lezama Lima, abundante em toda classe de influxos órfico-pitagóricos sob condensação poética, ou seja, menos fáceis de perceber enquanto mero “conteúdo”.
Em algumas ocasiões optei por modificar ligeiramente o texto original, com a única finalidade de tornar mais legível o conjunto dos fragmentos escolhidos.

[a] Maria Zambrano e o dia pas ón pitagórico:
[Os parágrafos são antecedidos pelo número da página da qual foram extraídos, conforme a edição mencionada, com a finalidade de guiar a leitura de quem possa contar com o livro.]
69. Cabe a conjectura de que a filosofia grega tenha deixado muitas realidades convertidas em almas doloridas; e dentro da filosofia, um filósofo, Aristóteles, o descobridor da definição. Definir é salvar e condenar; salvar condenando. Mais ainda, julgar. E Aristóteles descobriu também o juízo (...) É através deste Hegel da antiguidade que foram absorvidos todas as tentativas anteriores de pensar o ser. Assim sucedeu: todos os filósofos foram incorporados de forma visível ou invisível neste pensamento sistemático triunfante. Todas as tentativas filosóficos, menos uma: o dos “chamados pitagóricos”.

70. Nem sequer o nome de Pitágoras é pronunciado por Aristóteles nas suas lições sobre “a ciência que se procura”. Com reiterado desdém nomeia os sequazes de Pitágoras, uma e outra vez, confundindo-os naquilo que para um homem da antiguidade havia de mais infamante: ser confundido numa multidão, dando-lhes um caráter de massa, de acordo com a confusão do seu pensamento.
(...)
E ocorre que não foi o pensamento filosófico em todo o seu rigor o fruto do pitagorismo, senão de seu desdenhoso antagonista Aristóteles. Seus dons, em troca, foram a música e as matemáticas, duas filhas do número, não da palavra.
O tê-lo verificado assim justifica a intransigência de Aristóteles, pois ele não estava ali para admitir, sem mais, não já a existência de música e matemáticas, senão a sua ingerência no território do ser, do ser que para ele é logos. E só se o ser é logos, a filosofia pode existir.

71. Em troca, o Universo, em Pitágoras e seus discípulos, é um tecido de ritmos, uma harmonia incorpórea, que tal deve ter sido sua fé inicial: “Quem é o mais sábio? O Número; O que e o mais belo? A Harmonia”, dizia o catecismo da irmandade, antes do que escola, Pitagórica.
(...)
As almas respiram na harmonia, respiram no ritmo. A respiração de qualquer vivente, não é já ritmo ? O primeiro que o homem percebe...E mais do que perceber, é o ritmo que o acompanha, o ritmo que mede sua vida instante a instante junto com o martelo do coração...E, quanto aos deuses e daimones, o ritmo e a harmonia são seus elementos: eles vivem em metamorfoses e em dança.

73. Qual poderia ser o deus dos pitagóricos? O tinham, por acaso? Não o deus declarado em ideia [Aristoteles e seu Motor imóvel], senão a potência primeira que inspira, ou seja, o sagrado, o fundo sagrado (...) Essa espécie de placenta de onde cada espécie de alma se alimenta e nutre, ainda que sem o saber (...) E os pitagóricos descobriram e adoraram a música e as matemáticas, artes do número. E a música, arte do tempo.
(...)
...Se o Deus é a revelação do fundo sagrado de onde se partiu, temos que é ao Tempo primário, ao Tempo sagrado a quem os pitagóricos se sentam apegados (...) O velho Cronos das teogonias.

74. “Este Cronos imortal do conselho eterno, gerou o éter e um torvelinho imensamente grande por cada lado; nenhum limite havia abaixo, nem fundo, nenhum apoio”, dizem alguns versos órficos citados por Proclo. E ainda: “E Cronos da imensidão do seu seio engendrou Éter e Eros (...) e Cronos produziu por própria geração o fogo, o ar e a água”.
E Cronos, pai do éter e da noite eterna, do silencio, foi também pai da música, tempo feito alma em virtude do número. Cronos, pai vencido por Orfeu na lenda e na visão perdida de Pitágoras, pelo encanto do número sagrado.
Ainda que, para que fosse assim, houve a mediação não de uma razão inteligível, como no Deus de Aristóteles, não uma razão, senão um encanto. A magia persistente dos números e do canto: as fórmulas matemáticas conservarão sempre as pegadas de sua origem mágica, operante, ativa. Os números sagrados que conservaram plenamente os pitagóricos eram operantes, instrumentos de ação oculta.

75. E o encanto e a lira – harmonia que é razão, mas também e sempre evocação – é outra ação mágica, atraidora de almas, de lembranças. A música é a deusa que serve à memória. (...) Assim o número inicial, primeiro, é um encanto mágico, o simples contar que o amansa em monotonia. A monotonia, o primeiro dos caminhos aberto através do tempo, ao que corresponde a monodia do canto primitivo grego e da liturgia.

76. Os pensadores de inspiração pitagórica, do logos do número – e do tempo – não se encontram obrigados a dar um método nem um caminho de razões: em troca cunham aforismos, frases musicais, equivalentes a melodias ou cadências perfeitas que penetram na memória ou a despertam; “desperte” parecem nos dizer...

77. Platão lutou titanicamente com esta contradição entre seu pitagorismo crescente e seu dever de filósofo. (...) A diferença reside em que Aristóteles já se tinha decidido pelo logos-palavra, e Platão se sentia cada vez mais atraído, como um voto inevitável, para o logos do número e da música, que é igualmente o do silêncio.

79. Segundo o logos do número, todas as coisas estariam sob a categoria de “relação”, em essencial alteridade portanto, nunca em si mesmas. O universo integrado por números em movimento incessante, sem ponto de repouso, sendo sempre “o outro”.

80. Assim o tempo, sentido desde o velho deus Cronos, não é o tempo interior, o que sentimos em nós mesmos e em nossa vida de homens de hoje. É o tempo cósmico (...) A máxima realidade que de ele se arranca será a alma. A alma, descobrimento, revelação de inspiração órfica.

81. A alma (...) semente órfica e pitagórica, resplandecerá no pensamento aristotélico. E sempre será assim para qualquer semente pitagórica; ela nascerá em outro solo, sob outro nome. (...) A partir do cristianismo, dentro da tradição ocidental cristã, o pitagorismo cessará de existir como tal. (...) o pitagorismo viverá à sombra de uma bandeira estranha.

82. Enxergado pela filosofia, o pitagorismo era “o outro”. E a filosofia, vista a partir do pitagorismo, é a decadência de uma mais alta, celeste e universal sabedoria; como se a filosofia houvesse conseguido a sua vitória por uma limitação, por uma melhor adaptação ao meio terrestre; êxito de um provincianismo terrestre. A decisão do homem que, para conseguir “uma vida melhor”, um equilíbrio vital, renuncia a ser o habitante do Universo dos astros, a sua alma interplanetária.

83. Assim é como o “saber desinteressado”, a filosofia, veio a alterar todos os saberes – inspiração, mistérios, sabedoria – do mundo mediterrâneo.

84. A memória sobre humana de Pitágoras, em Platão, se converte em “reminiscência”, a fim de fazê-la reconhecer sua origem. Memória que não escolhe o padecer da alma no tempo, mas se dispõe a se livrar do tempo e de sua história.
Salvar a alma pelo conhecimento é a solução que o pitagorismo encontra em Platão. É já filosofia, porém permanece sendo antes de tudo religião.

86. A ciência caldaica, a matemática egípcia, eram ciência, ou seja: conhecimento, ainda que não constituído no modo ocidental. Ciências as mais antigas, estas matemáticas celestes entremeadas com adoração à luz, ao firmamento, aos astros. Não comportavam uma apetência para se desprender dessa adoração que foi sua origem; em todo caso, como vemos no Egito, se porventura se desprendiam de uma antiga religião ou culto inicial era para preparar outro, para servir ou dar origem a um culto mais puro; formas de conhecimento que nunca buscaram se desprender de um rito, de uma adoração. É o que parece diferenciar estas ciências da filosofia grega nascida de um movimento humano encaminhado a desprender-se dos deuses, e sobretudo do rito, do culto em todas as suas formas; ou seja, se constituir de forma apartada do mundo sagrado.

88. Há um sentir muito específico dos pitagóricos, que é aquele referente à viagem da alma no tempo. É um sentir enraizado nas grandes culturas à que temos feito referência recente, de onde nasceram as ciências caldaica e egípcia, assim como a da adoração iraniana da luz e do tempo infinito, e algo mais amplo ainda: o modo de sentir-se no mundo do homem oriental.
Pois para onde quer que voltarmos o olhar, vemos o homem voltado para o divino: na Índia, Irã, Caldeia e Egito, a vida do homem sobre a terra aspirava a ser cópia dos céus. As cidades, os templos, a casa mesma, eram reservatórios celestes. Edificar, a atividade prática por excelência entre todas, era, não construir algo cheio, senão circunscrever um vazio, um espaço – o pátio que subsiste na casa mediterrânea – onde desce o céu. Ou levantar uma torre que pretende escalar o céu na qual se acreditava estar a meio caminho aquele pela qual ela ascende, e observar ao mesmo tempo o que ocorre no céu e na terra. As pirâmides do Egito são espelhos da luz solar, resposta da terra e não interrogação a seu deus. Pois o homem daquelas culturas não interrogava aos céus, lhes respondia, e desde essa atitude inicial de responder, em lugar de perguntar, como Tales, adquiria conhecimento.

89. O secreto de Pitágoras quiçá seja que não se formulou a pergunta de Tales, que não perguntou inicialmente. Sua atitude originária deve ter sido a de responder, como os antigos ...
E não é que não se fizesse nunca uma pergunta, senão que não se perguntou inicialmente como raiz de seu afã de saber; que seu saber não nasceu de um perguntar, senão de uma atitude comum a todo Oriente, de responder ao alto, às chamadas do alto, entregando-se integralmente. Seu saber haveria de ter assim um caráter como de pronto, de algo impresso nos céus, na alma e na mente, ao estar voltados para eles.

90. De tais sentimentos e experiências, como haveria de surgir um saber “filosófico” em sentido estrito? E como, porém, poderia não se apresentar antes ou depois, a ideia, a crença de que a filosofia já estava ali ? Difícil, raro momento em que a filosofia se apresenta antecipadamente em todos seus possíveis e ainda impossíveis logros, como presença alcançada, ainda que não pode nascer justamente por isso: por estar antes de ser, por não ter passado pelo não-ser de que nasce a pergunta, que já é a desconfiança, o retraimento do ânimo.

92. Para nós, ocidentais, nascidos da filosofia grega e do cristianismo, ter uma alma é algo óbvio, tão óbvio, que o temos “superado”. Porém, a conquista da alma ao mesmo tempo que seu descobrimento, ocupou um longo tempo, toda uma idade através de diversas culturas, especialmente Egito e Grécia, até Aristóteles, em quem a alma fica, por assim dizer, fixada.

93. A percebemos primeiro no triunfo da religião de Osíris entre os egípcios, no que se refere a alma. Osíris torna possível que cada homem encontre sua alma aqui na terra. Antes, como se sabe, entendia-se que somente o faraó nascia junto com a sua alma, ou com o que na mente egípcia se compreendia por tal – o kaa-; os demais homens apenas após sua morte a recebiam. Esta exigência de ter uma alma cada homem sem esperar a morte, de não estar separado da sua alma, precedeu em muito a exigência intelectual de descobri-la.
O privilegio do faraó de viver na companhia da sua alma, devia estar vinculado a uma especial sabedoria: saber da origem, de onde vinha e para onde haveria de retornar; viver à maneira de um viajante que conhece e tem memória de sua rota desde o ponto da partida e, por isso, sabe em verdade o sentido de cada acontecimento.

96. A atitude que corresponde ao orfismo e ao pitagorismo, que vemos resplandecer na lenda de Orfeu, é a de aceitação total e ainda de avidez da alma por se lançar em sua viagem e apressar seu padecer do tempo. (...) Padecer o tempo é percorrer sem poupar abismo algum: a morte e ainda algo mais: esse andar errante, como os poetas órficos...

97. Se trata de uma ação, de uma viagem. Orfeu é poeta mais pela sua ação que pelo que pode ao fim dizer. Ação poética, encantação, tão diferente da argumentação filosófica, que se desata no pranto e no gemido, princípio da música.
(...)
Porém os pitagóricos não avançarão até a tragédia, pois nela se resolve num instante decisivo o conflito. Se manterão, ao contrário, fieis ao indizível; a voz, o gemido, antes de procurar articular-se em palavra, será moldada, moldada pelo número. A palavra sempre precipita o tempo, a música o obedece com certo engano, pois vá em busca do êxtase.
O indizível padecer da alma quando sente a sim mesma, ao se encontrar, se resolveu no pitagorismo pela aceitação do orfismo e da sua aventura protagonista: a descida aos Infernos, aos abismos, onde o que sucede é indizível. E como é indizível, se resolverá em música. E na forma mais musical da palavra: a poesia.

98. A música sai do inferno. não caiu desde o alto. Sua origem, antes que celestial, é infernal. Mais tarde aparecerá a “harmonia das esferas”. Pois a harmonia vem depois de gemido e do encanto. O peculiar de Orfeu, marca e sinal da alma grega, é que o gemido não é queixa desesperada, imprecação, senão doçura secreta, misteriosa doçura que sai das entranhas do inferno. A arte grega, mesmo a tragédia, é solidária com Orfeu, não o nega. Todo horror será amassado, toda queixa envolvida em doçura.
(...) A música órfica é o gemido que se resolve em harmonia; o caminho da paixão indizível para se integrar na ordem do universo.

99. Descobertos os intervalos musicais e a lei da intensidade do som em proporção com o comprimento da corda, apareceu um logos. Desde então, sem que a alma gemesse, a música poderia fazer-se. O instrumento responde, objetivamente, a essa experiência do canto; responde objetivamente e simbolicamente: o símbolo é uma espécie de objetividade.
As sete cordas da lira simbolizam a viagem da alma através dos sete céus. É um método, um caminho simultâneo no tempo e no espaço, que ao ser percorrido retira a alma da sua condição gemente, de seu sentir indizível. Ao encontrar seu modo de “dizer” – musical e não lógico – se restitui ao seu lugar e a sua originária condição; é já si mesma; foi resgatada.

100. Não há limitação para a alma que viaja para fora, no espaço dos astros em busca de seus semelhantes, nem para dentro, no inferno do tempo e da morte, em busca de si mesma. E assim não há contradição em que se encontre ao mesmo tempo em vários lugares. A alma é múltipla? Ou cada qual tem muitas almas?
(...)
Vaga a alma sem sede, obrigada a percorrer o Universo e a viver cada um dos seus estados. Viagem que consome várias existências humanas. E acaso de cada existência não fica uma alma particular, uma memória? Como poderá se perder? A alma-memória subsiste através de seu longo delírio, da sua viagem aos lugares estelares e infernais. Cada homem, poderá ter só uma alma?

101. Em um mundo de planos, de séries, de dimensões, de escalas musicais, pelas quais as almas sobem e descem, onde está o homem? Como reconhecer a cada homem, como saber se é “o mesmo” ou a “mesma alma perdida”? “Como a reconheceste?” – poderia ter-se dito numa das conversações entre iniciados-. “Porque obedecia a mesma música” .
Descobriram a escala musical, que deve ter sido uns dos seus mais símbolos segredos: dia pas ón [“Tem de se passar por tudo”, podia ser o sentido ali simbolizado], que abarca a totalidade dos sons, separados por vazios de silêncios. O universo do número é descontínuo; só a harmonia engendra a continuidade. Harmonia que necessariamente havia de submeter o coração da fera, o ímpeto vital, sem mais. Pois a música une em si os dois universos ou dois lados do Universo: o dos astros de cujo movimento desceu a matemática, e o do mundo infernal onde nasce o gemido; também do inferno da matéria que soa ao ser percutida. Nas vibrações do som desperta a matéria que oferece assim algo próprio, não um reflexo, como a luz. A vibração sonora nasce nos próprios corpos; não é como a luz recebida. O som se produz “neste mundo” onde os pitagóricos situaram o inferno, no inferno terrestre. Da voz do inferno, sometida ao número vindo dos astros, nasceu a música, a mais inumana das artes.

109. A aceitação do Motor imóvel [o Deus do pensamento em Aristóteles] comporta um sacrifício, o sacrifício dessa alma e seu direito a sua dupla viagem infernal e sideral; o sacrifício de sua “história”. (...) Os pitagóricos se negaram a fazer o sacrifício que exige o Deus do pensamento; o sacrifício da história irrenunciável da alma.

110. E assim, no momento histórico – século I d.C. – em que a solidão humana acusava a ausência dos deuses e a insuficiência do Deus da filosofia, encontramos aos pitagóricos agrupados em seita religiosa, esquecidos das tarefas intelectuais, vivendo o mistério e o mito; convertidos em uma religião secreta, de iniciados. Sua visão tendia a reunir os mitos em que se podia descobrir um símbolo da dupla viagem da alma e da oculta harmonia do universo. E ainda mais que olhar, se diria que escutavam a voz afogada de uma sabedoria que os homens não souberam merecer, situados à margem da história oficial para prosseguir sua secreta, íntima história.
(...)
Eles por acaso o sabiam? Não parecia importar-lhes muito seu posto no mundo das ideias nem no mundo das vigências. Na renúncia plena do intento filosófico, haviam retornado às suas origens adentrando ainda mais na aspiração religiosa de onde nasceram, em seu “sentir originário”. Já nem os números pareciam importar, senão na sua função de introduzir na vida diária o ritmo, o cânone “que adapte a alma à sua realidade verdadeira liberando-a da sensação”, do feitiço desta vida. Tal é a situação que se depreende do descobrimento da Basílica Pitagórica de Roma. E o destino da branca capela parece marcar, significar, o destino do pitagorismo .

 

Traduzido por 1026☼

 

¹ A música pitagórica não é a que produz prazer, senão a que é obedecida. Sentir uma música não é gozá-la, senão segui-la.

 

² Por volta do ano 1917 foi descoberta uma basílica construída subterraneamente sob um montículo na Vía Prenestina, perto da Porta Maggiore de Roma, com ocasião dos trabalhos da estrada de ferro Roma-Nápoles. O investigador francês J. Carcopino chegou a identificá-la como uma basílica pitagórica da metade do século I da nossa era. (...) Segundo as investigações de Carcopino, a basílica apenas serviu a seu fim, pois ainda não acabada na sua decoração, houve de ser abandonada por seus frequentadores e patronos, vítimas de um “senatus consultum” votado por instigação de Claudio, “exilando da Itália a todos os que o vulgo englobava sob o nome de matemáticos”. Apareceu, pois, intacta ante os olhos dos seus descobridores, revestida de brancos estuques, de essa brancura tão cara aos pitagóricos.

 

³ Nota da FH: aos interessados na Basílica subterrânea, sugere-se a leitura de La Basilica Sotterranea Neopitagorica di Porta Maggiore in Roma, de Salvatores Aurigemma e de Roma órfica e dionisíaca nella Basilica “pitagórica” di Porta Maggiore, LANZETTA, Domiza.