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Representação do DAT, conforme RACHEWILTZ, Boris, in Egitto Magico Religioso, Edizioni dela Terra di Mezzo, 2014.

 

 

 

Neste interessante artigo, o conhecido egiptólogo Boris de Rachewiltz esclarece e resume o longo e conturbado processo que no Egito conduziu ao encontro e fusão entre a antiga e elitista escatologia - primeiro estelar e posteriormente solar - com a subsequente doutrina osiriana concernente a um mais generalizado destino de morte e renascimento em outro mundo.

Graças a ocorrência dessa fusão, dois valores espirituais foram combinados em Osíris: o antigo, aristocrático, acessível somente por intermédio da iniciação; e o religioso-popular que lhe foi próprio desde o seu início.

Por esse caminho podemos, portanto, razoavelmente supor que quando no Egito ptolomaico o culto a Serápis - que se identificava com Osíris e com o touro Apis, que o representava - começou a difundir-se desde Alexandria até a bacia do Mediterrâneo greco-romano, com ele foi transmitida a inteira Tradição Osiriana, em ambos os aspectos, iniciático e religioso.

Nápoles foi o centro privilegiado desta transmissão, e no local onde se situava a antiga Regio Nilensis, habitada por uma colónia de alexandrinos, se pode ainda hoje admirar uma estátua do rio Nilo.

O ocaso da manifestação visível e religiosa do culto osiriano pode não ter levado necessariamente à extinção do seu aspecto misteriosófico, do qual se podem encontrar ecos no assim chamado “Egiptismo” do Renascimento (que teve em Giordano Bruno seu mais notável e ilustre expoente) e estende-se até à época contemporânea naquela corrente sapiencial que na Europa se convencionou chamar de Ecole de Naple.

(P.R)

 

 

Ra e Osíris

BORIS DE RACHEWILTZ

 

Política Romana 1/1994

 

O início da civilização faraônica permanece ainda envolto em mistério.

As primitivas populações nômades de caçadores são substituídas, quase de súbito, por uma civilização bem-organizada e até refinada.

O Professor W.B. Emery, da Universidade de Londres, assim se expressa: "por volta de 3400 a.C. uma grande mudança ocorreu no Egito e o país passou de um estado de cultura neolítica avançada com um caráter tribal complexo para duas monarquias bem-organizadas... Os estudiosos estão divididos em suas opiniões quanto às razões desse súbito salto cultural, mas parece provável que a causa principal tenha sido a incursão de novos povos no Vale do Nilo, portadores dos fundamentos daquilo que, por falta de melhor definição, podemos chamar de civilização faraônica”.

 

Imagem: O deus do Sol Rá e Osíris se reuniram no simulacro do carneiro de Mnevis. Tumba da Rainha Nefertari. XVIII dinastia. Vale das Rainhas.

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Não se trata necessariamente de hordas de conquistadores sobre os quais, no entanto, falta a menor evidência arqueológica, mas da infiltração pacífica de grupos possuidores de uma cultura superior, talvez os sobreviventes de algumas das antigas civilizações desaparecidas sobre as quais fabularam até mesmo escritores da era clássica, como Platão.

É provável que esses grupos possuíssem concepções religiosas que poderiam ter influenciado aquelas de características totêmicas e zooantropomórficas das populações do Egito pré-histórico.

Obviamente não temos nenhuma evidência objetiva dessa influência, embora traços dela possam ser encontradas na literatura religiosa mais antiga, os "Textos das Pirâmides".

 

Imagem: O deus Ra hieracocéfalo no trono de Osíris no Duat. Tumba da Rainha Nefertari. XVIII dinastia. Vale das Rainhas.

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Aparecem aqui a doutrina estelar, a solar e o mito de Osíris, bem como a memória fragmentária de ritos funerários pertinentes à pré-história. No campo escatológico, a doutrina estelar precede de longa data a solar e pode, portanto, ter sua origem na era pré-dinástica.

A primeira localização do reino dos mortos foi relacionada ao mundo das estrelas e o hieróglifo para o Dwat ou Dat, ou seja, para o submundo, é constituído por uma estrela inscrita em um círculo.

Os "Textos das Pirâmides" assim se expressam, dirigindo-se ao falecido soberano: "O céu te concebeu junto com Orion, o Dat te leva junto com Orion" e "O Dat te leva ao lugar onde está Orion". O rei então "ascende ao céu entre as Estrelas Imortais" (isto é, as circumpolares), e novamente "ele se torna uma Estrela Imortal", etc.

Esta concepção “celestial” do submundo[1] terá um papel preponderante na criação do paraíso “aristocrático” limitado ao faraó, opondo-se à outra, antiquíssima, que localiza as regiões inferiores dentro da terra e que é a base do submundo "democrático". Essas duas tendências originais devem enfrentar, em determinado momento, duas ulteriores concepções que se desenvolvem paralelamente: a doutrina "solar" e a relativa ao mundo de Osíris.

A primeira, que encontra seus editores teológicos em Heliópolis, coloca no centro da ação o deus Sol, Ra, determinando o nascimento de um paraíso solar que, justamente por ser "celestial", herda as prerrogativas da antiga doutrina estelar e é reservado exclusivamente para o faraó. A exclusão do povo deste paraíso é claramente atestada nos próprios "Textos das Pirâmides". Já o soberano, como atestam os "Textos dos Sarcófagos": "sobe ao céu, une-se ao disco solar e reincorpora-se àquele do qual proveio". Somente em um período posterior os nobres foram admitidos no paraíso régio.

Paralelamente à doutrina solar-aristocrática, a doutrina osiriana surge e se firma. O deus Osíris, segundo a moderna crítica histórica, teria como real protótipo pré-dinástico Anzty, um líder de clã que tinha como insígnia, além das duas penas de seu chapéu, também o cajado e o flagellum. Símbolos, todos eles, que foram assimilados a Osíris no processo de identificação.

E, sempre conforme os "Textos das Pirâmides", uma alocução dirigida a Osíris diz: "Hórus te fez viver em teu nome de Anzty". O sacerdócio heliopolitano teve que enfrentar não poucas dificuldades para incluir Osíris, como herdeiro de Anzty, chefe de uma comunidade pastoral, em seu próprio sistema teológico solar e aristocrático.

No entanto, foram forçados a fazer essa admissão, sob o impulso da popularidade do deus, cujas ideias humanas haviam se apoderado facilmente das massas. A memória do impacto entre a primitiva concepção "aristocrática" solar e a "democrática" de Osíris é documentada por algumas passagens dos próprios "Textos das Pirâmides" com caráter claramente "anti-osiriano". Entre outras coisas é dito: "Não deixe Osiris vir aqui nessa vinda maligna que é a dele... Vá embora! Depressa, corra para Adja!" (ou seja, no local onde segundo a tradição foi morto por Set).

E, com referência ao soberano, é dito: "Olha para Osíris que comanda o defunto (comum). Aí ficas, afastando-te dele, porque não és um desses (dos mortos) ..." E o próprio deus Sol intervém: "Ele liberta o rei do deus abaixo e não o entrega a Osíris, pois ele não deve morrer a morte".

No entanto, o culto a Osíris, sob o impulso preponderante de seus fiéis e em sintonia com o surgimento de profundas modificações sociais, ganha espaço e o próprio falecido rei, em outras passagens dos "Textos das Pirâmides" de redação mais recente, é assimilado a Osíris, embora sem qualquer referência ao paraíso celeste.

Assim, em uma fórmula para o rei é dito: "Como você tem seu coração, Osíris, como você tem seus pés, Osíris, como você tem seus braços, Osíris, então ele (o falecido rei) tem seu coração, seus pés e os seus braços".

O Antigo Império termina no final da 6ª dinastia, cerca de 2200 a.C., em meio a convulsões revolucionárias que derrubam as classes sociais enquanto Osíris triunfa.

O Médio Império é um período confuso que vê a invasão do Egito pelos "Reis Pastores", os hicsos e o subsequente resgate do rei Antef, o último da XVIIª dinastia e iniciador da XVIIIª, que abre o Novo Império. E é neste período que se verifica um acontecimento de particular relevância no plano mágico-religioso.

Deve-se ter em mente que na cidade de Mendes (antiga Djedet, hoje Tell El-Run’a no Delta) desde a II dinastia é atestado o culto do carneiro sagrado, por vezes identificado com o deus Khnum, mas assimilado por último a Osíris. É nesta cidade que, no Novo Império, as almas do deus Sol Rá e Osíris se encontram, fundindo-se no carneiro sagrado.

Um afresco mural na tumba da rainha Nefertari (Vale das Rainhas, 18ª dinastia, cerca de 1550 a.C.) nos mostra essa fusão. Uma personagem, de corpo antropomórfico e mumiforme, está ereto sobre um pedestal. Tem cabeça de carneiro, encimada pelo disco solar.

À esquerda, em frente desta figura, está representada a deusa Ísis e atrás a deusa Néftis, ambas no ato de sustentar ereta a figura mumiforme.

O texto hieroglífico é transcrito verticalmente na frente e atrás da figura. No primeiro caso é dito: "Este é Ra em paz com Osíris", enquanto no segundo é dito: "Osíris, em paz com Ra". No mesmo túmulo Ra hieracocéfalo senta-se no trono que Osiris geralmente ocupa como Juiz dos mortos no Dwat.

Trata-se, portanto, de uma “solarização” do submundo, documentado por cenas semelhantes, como em alguns sarcófagos conservados no Museu Semítico da Universidade de Harvard, bem como num baixo-relevo da porta de Neferhotep, hoje em Bruxelas, bem como nos papiros em que o defunto é reproduzido em ato de adoração diante de Rá, sentado no trono que, de jure, pertenceria a Osíris.

Paralelamente, este deus é por sua vez associado a Orion, ou seja, ele entra na dimensão "estelar" e o próprio defunto osirificado pode afirmar (cap. XV do "Livro dos Mortos"): "Eu vou para o céu, viajo pelo firmamento e entro em contato com as Estrelas".

Não é irrelevante considerar, em relação ao carneiro sagrado em que se fundem as almas das duas divindades, que, na época em que este evento teria ocorrido, o Egito, astrologicamente, estava entrando justamente no signo de Áries e que há também uma mudança na orientação sagrada em relação aos templos e túmulos.

Argumentos, todos dignos de meditação cuidadosa.

Traduzido por 268.

 

[1] “Vida após a morte” (N.d.T.)